quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A expressão do não falado



Outro dia conversando com uma colega sobre os pacientes internados em psiquiatria eu discorria sobre a dificuldade em lidar com quadros de extrema desorganização psíquica, nos quais delírios e alucinações estão fortemente presentes, e o trabalho psicológico ficava muito limitado e dependente da atuação do medicamento. Além dessa espera havia a possibilidade do primeiro remédio prescrito não ser o que o paciente melhor responde e ser necessária a troca de medicação. Mais tempo... Já vi quadros em que o paciente ficou várias semanas em surto porque os medicamentos inicialmente prescritos tinham efeitos inócuos, fazia-se a troca, pouca resposta e só na terceira tentativa o início da remissão dos sintomas. E esse não acertar de primeira nada tem a ver com má assistência. É característico da psiquiatria o método empírico na descoberta do medicamento que melhor o paciente responde. Nesse processo todo, muitas vezes, a família do paciente é quem mais sofre. É muito difícil e angustiante para eles compreenderem e aceitarem quando dizemos que o remédio X não estava mostrando um resultado esperado e por isso tentaríamos o Y. A família sempre pergunta: então agora é o medicamento certo? E a resposta é sempre meio evasiva porque é necessário aguardar o resultado. E a dose? Também outra caixinha de surpresas. É difícil em uma sociedade tão cartesiana compreender que a  psiquiatria é diferente nesse quesito. A família sofre muito nesse processo. E por isso, muitas vezes, a família precisa ser psicologicamente mais acolhida do que o paciente. Como a medicação tem seu tempo a família sente um desamparo "científico" e precisa ser cuidada. Sentem-se inseguros em suas decisões, se depositam confiança no que estão ouvindo, na instituição e nos psiquiatras. São mais incertezas, são mais pontos de interrogação do que respostas. Inclusive no que se refere ao desencadeador da patologia. Muitos sempre perguntam: por que isso aconteceu, qual a explicação? Pontos de interrogação e os tais "mistérios" na psiquiatria. Quando acompanha-se o dia a dia um paciente em surto, intuitivamente só de olhá-lo sabe-se como ele está, se houve evolução do quadro ou não. Algo na postura do seu corpo, algo em seu olhar já delatam um psiquismo confuso. Não há necessidade dele se expressar verbalmente, outras expressões já o denunciam. E é impressionante, quando a organização psíquica melhora, é a mesma sensação. Só de olhar para a fisionomia do paciente, para sua postura corporal  já se percebe a melhora. Fisicamente tudo muda. A intensidade muda. A expressão fica diferente. E essa mudança pode ser percebida de um dia para o outro. Lembro-me de um paciente jovem, em surto psicótico agudo, internado na clínica em que eu trabalhava. Estava muito desorganizado psiquicamente, apresentava delírios, pensamento e fala confusos, agitação psicomotora, persecutoriedade. No caso dele a medicação demorou semanas para fazer efeito e foi trocada algumas vezes.  Em toda visita seu pai saia chorando da clínica de tão angustiado por ver o estado desorganizado e confuso do filho. Lembro que após umas três semanas, logo pela manhã, olhei para o rapaz e vi o despertar de uma melhora, apesar de seu  discurso ainda manter-se empobrecido e confuso. Logo que encontrei o pai disse-lhe que iria se surpreender, que o filho estava melhor, seu discurso não havia mudado muito, mas que sua melhora era perceptível. O pai me olhou com um ar de interrogação e foi ver o filho. Após a visita presenciei esse pai sorrir pela primeira vez e me disse: "ele realmente está muito melhor". E esse melhor nada tinha a ver com a fala do rapaz, tinha a ver com a afetividade que se mostrando mais organizada. Inclusive esse rapaz mobilizou afetivamente muitos dos funcionários da clínica. Ele passava o dia todo sentado perto da porta pela qual os parentes entravam no pátio, repetindo que seu pai estava naquela salinha e que estava esperando-o para levá-lo para casa. Passava o dia todo lá, sozinho. Por incontáveis vezes eu abria a porta, mostrava que o pai não estava, dizia que ele viria outro dia, para não se preocupar, que estávamos cuidando dele. Mesmo assim, ele se sentava na escada, ao lado da porta, e dizia aguardar o pai: "ele está aqui, eu sei" (sic). Era a expressão do afeto.

2 comentários:

  1. Esse post parece realmente um diálogo... Quando conversamos com alguém, dificilmente continuamos o tempo todo no mesmo assunto, sem desviá-lo. Uma coisa puxa a outra.

    Entretanto, a parte do jovem me saltou aos olhos... Psiquiatria é algo tão interessante, mas por vezes é difícil pra mim acreditar que exista mesmo casos assim... Não é desmérito não, tá? É só que eu nunca tive a oportunidade de ver isso de perto, então pra mim é tão estranho... Não sei, é confuso, o que acontece ao ser humano pra que ele chegue a um estado mental assim?

    É meio ignorante o vou dizer agora, mas as vezes eu tenho medo de ficar pensando muito nisso e acabar me perdendo...

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  2. Olá Patrícia,

    Não é ignorância, é assim mesmo, desconhecido, não é cotidiano. Muitas vezes não temos a resposta do porque a pessoa chega a tal estado, mas ajudá-lo a estruturar uma mudança, é o que podemos fazer. Na saúde mental ainda existem muitos mistérios a seram desvendados.

    Abraços,
    Patrícia

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